domingo, 12 de fevereiro de 2012

Quando o menos é mais e o mais, menos

A HIPÓTESE de que a relação que o homem tem com a realidade não obedece a cálculos racionais pelo fato mesmo de passar por filtros tem o seu respaldo nas mais rotineiras situações, uma delas a de quando o mais parece menos e o menos, mais. Para começar com um exemplo, certo dia ouvi o comentário de alguém no ônibus a respeito de uma pessoa que, no intuito de receber ajuda financeira, distribuía aqueles bilhetinhos amassados e sujos nos quais expunha a sua lamentável vida de doença e miséria. A pessoa que o fazia tinha poucos dentes na boca, sendo que na parte superior os poucos que ainda restavam eram tortos e estavam bastante podres, o que chamava a atenção de todos. O comentário do passageiro no banco de trás foi o seguinte: "esse cara é cheio de dente na boca". Ele disse "cheio", quando na verdade a pessoa tinha era menos dentes que as demais. Eis, portanto, um exemplo de como o menos, ter poucos dentes, pode parecer mais apenas por destoar do usual. Ter trinta e dois dentes (ou vinte e oito, algumas pessoas não têm os cisos), e em seus devidos lugares, é algo que passa despercebido. Um exemplo contrário mas que obedece à mesma lógica do desequilíbrio, o de como o mais é percebido como menos, pode ser encontrado em certas mulheres: por mais roupas que usem, sempre vão parecer estar usando menos que o devido. Que desequilíbrio é esse entre a objetividade exterior e a percepção dessa mesma realidade? A percepção do homem é distorcida? O problema todo não é dos sentidos, se são falhos ou imprecisos, mas a intromissão do sujeito na percepção que ele mesmo tem. Os limites entre o fora e o dentro não são claros no que diz respeito à realidade e a sua percepção. E podemos prosseguir com mais exemplos: um homem rico porém insatisfeito com o que tem por achar ser menos que seu vizinho; ou a mulher que sonha em se casar mas que, quando o faz, depois de certo tempo seu marido se torna algo excessivo para ela. Para fazer uma referência a talvez o mais importante personagem do século vinte, Hitler "percebia" muitos judeus na Alemanha e os considerava, mais do que um incômodo, a causa mesma do infortúnio do país naquele período. O que ele então deveria ter se perguntado era: por que percebo que há judeus demais? E para aqueles que estudam a Alemanha nazista daqueles anos, a crucial questão que deve nortear os seus estudos é: que imagem da Alemanha o povo alemão da década de 1930 fazia, de modo a considerar o judeu como o intruso, o corpo estranho perturbador da ordem? Slavoj Zizek já explorou bastante este assunto em muitos de seus livros. Ora, esse desequilíbrio entre a falta e o excesso é exatamente a marca do afastamento do homem de uma natureza, seja exterior, traduzida no nome de "habitat natural", ou interior, aquilo que lhe diria o quando, o quanto, o como e até mesmo o que querer e desejar para encaminhar-se na direção da satisfação plena. A impossibilidade estrutural do equilíbrio pode ser experimentada no pulo da falta de algo para o seu excesso no ato mesmo da conquista. Este algo conquistado anteriormente desejado torna-se então perturbador por sua presença mesma. Certa vez ouvi a frase, acho de Schopenhauer, que dizia que "a vida é um pêndulo que balança entre o sofrimento e o tédio". Sofre-se pela falta e entedia-se pelo excesso. Teriam os animais esse problema? Eles sim vivem num Habitat especificamente seu e trazem dentro de si a direção suficiente para a busca do que é necessário para a manutenção tanto de sua vida quanto de sua espécie. Já o homem, imerso num mundo de símbolos, o índice de sua falta de Ser é o desencontro entre a necessidade e a satisfação, o desequilíbrio entre a falta e o excesso.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

A finitude do homem e a inconsciência de Deus

FOI LENDO recentemente um comentador de Kant que uma importante inversão operada por seu pensamento se tornou clara, bem como suas conseqüências, essenciais à compreensão de seu sistema. Trata-se, em oposição aos autores anteriores a ele, da inversão na maneira como a questão da limitação humana pode ser pensada. Como a abordavam os autores da tradição, tais como Descartes, Espinosa e Leibniz? A referência a partir da qual as limitações do conhecimento humano foram deduzidas era a de uma instância absoluta, ou seja, Deus, ser infinito e onisciente. Diante de tal fato, obviamente, nós, homens – que não somos nem infinitos nem oniscientes – éramos considerados limitados. Esse ser absoluto que é Deus foi o pano de fundo de onde se extraia a verdade dos limites do homem. O pressuposto necessário para se pensar Deus como a referência em relação a qual o homem não seria outra coisa que um minúsculo ser era a sua existência. Para tanto, a sua prova se fazia necessária através do conhecido argumento ontológico, aquele por meio do qual se deduzia a existência de Deus meramente pela análise de seu conceito: Deus é um ser que possui todos os atributos, e sendo a existência um atributo seria contraditório a afirmação de que Deus não existe. Então, as diferenças entre Deus e o homem eram denominadas de diversas maneiras, ora como ignorância, ora como erro, falta ou morte. Com a inversão operada por Kant, primeiro pensador do mundo recém surgido após o fim da cosmologia antiga, o que ocorre? Ao invés de pensar a finitude a partir da ideia de um absoluto, Kant inicialmente pensa a finitude. É somente depois de delimitados os limites do homem que vai pensar (a possibilidade de) o absoluto. Tendo isto em vista, por onde melhor poderia começar a sua grande obra a Crítica da razão pura senão por uma análise daquilo que marca nossa finitude, isto é, pela análise da sensibilidade e das suas duas formas essenciais que são o tempo e o espaço? Eis uma autêntica abordagem da limitação do homem. Possuidor de um corpo que ocupa a cada vez um lugar no espaço e um instante no tempo e que igualmente se relaciona com aquilo que tem uma estrutura espaço/temporal, depara-se ele com um mundo exterior com o qual não se confunde e que se lhe impõe. Qualquer ideia de acesso a seja lá o que for que não seja pelas limitadas condições do sujeito (e que tem a pretensão de ser uma via absoluta) deve ser considerada falsa. A não ser, é claro, na ficção. A sensibilidade, faculdade do homem de ter intuições, é a marca dessa finitude, e é pelo mesmo motivo que toda sensibilidade supõe um mundo que a ela se mostra que toda consciência é a consciência de alguma coisa. Ou seja, não existe consciência sem um objeto da consciência. Por isso que só são dotados de sensibilidade e de consciência seres limitados e finitos. Portanto, se Deus existisse ele necessariamente não teria percepções nem seria dotado de uma consciência. Para usar outros termos, o caráter infinito de Deus e sua onisciência implicariam no fato de que ser e pensar seriam uma coisa só, uma vez que a separação entre ambos provém de tal limitação. Esquematizando ao máximo a questão que é mais pertinente ao homem: para os seres finitos, ser e pensar são coisas distintas, e o corte entre as duas coisas tem como sua marca tanto a sensibilidade quanto a consciência. Tal separação entre pensar e ser é a separação mesma entre o sujeito e o mundo. Para esse sujeito que pensa e percebe, o mundo tem que ser algo diferente dele. A conclusão geral é a de que por ser o homem um ser finito e limitado que ele percebe o mundo e tem uma consciência, ao passo que Deus, se ele existe, por ser infinito e ilimitado ele necessariamente é inconsciente e não tem representações sensíveis, isto é, não tem percepções. Reconhecendo os limites do conhecimento humano nestes novos termos, como fica o conhecimento do absoluto? Seria ele possível? Para que algo seja conhecido, a que condições formais a coisa que se quer conhecer deve se submeter. Citando um curto trecho do comentador de Kant:

"(...) formulemos de modo mais simples possível: com Kant, não é mais a figura divina do Absoluto, da onisciência, que vem relativizar a finitude humana, defini-la como ser menor. Muito pelo contrário, é em nome da finitude insuperável, que é aquela de todo conhecimento humano, que a figura divina do absoluto é, por sua vez, relativizada, rebaixada à categoria de uma simples "Ideia", cuja realidade objetiva passa a ser indemonstrável pelas vias de uma teoria filosófica ou científica qualquer." (Luc Ferry, Kant)

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Papa-Léguas

Reclamam do fato de os episódios do desenho Papa-Léguas serem todos iguais. Mas não poderia ser de outra forma, uma vez que aquilo que o coiote persegue, o Papa Léguas, é em si mesmo inatingível. Por que? Um tem mais velocidade que o outro quando se perseguem? Tal resposta não é boa e não dá conta do que realmente acontece. Na verdade, o Papa-Léguas não existe senão na cabeça do coiote que o caça. E essa interpretação não é absolutamente aleatória. Percebe-se isso numa das mais comuns armadilhas contra o Papa-Léguas, a do desenho de um túnel feito na pedra pelo próprio coiote. Quando o Papa-Léguas segue a estrada a toda velocidade e entra no túnel esperávamos que ele se chocasse contra a pedra em que o túnel fora desenhado. Mas isso não ocorre. O Papa-Léguas atravessando o falso túnel na pedra revela que ele é regido apenas pelas leis daquele cenário e daquela simulação de realidade. Quando o coiote tenta fazer o mesmo esse sim se depara com a dureza da pedra, pois as leis da natureza a que está necessariamente submetido (por exemplo, que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço) não são as mesmas do Papa-Léguas. Se o coiote imaginou um túnel quando o desenhou na pedra, o Papa-Léguas enquanto um ser igualmente fruto de sua imaginação – ou melhor, de seu delírio – é plenamente capaz de atravessá-lo. O desenho na pedra e o bicho perseguido são feitos da mesma "matéria", por isso se interagem. O programa Papa-Léguas diz respeito, portanto, a um animal solitário que delira no meio do nada, um coiote que persegue algo criado por sua loucura num deserto, num lugar vazio. Há nisso alguma lição? O que na nossa vida diária encarna o Papa-Léguas e nos motiva a levantar todos os dias? Dinheiro, mulher, felicidade...? Acreditar que essas coisas existem de fato e que devemos correr atrás delas isso só nos leva a dar com a cara contra a pedra, como acontece sempre com o coiote. Logo abaixo uma seqüência que ilustra bem a ideia central do desenho:

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

A máscara de prata

NA COLETÂNEA Freud e o Estranho, Contos fantásticos do Inconsciente, há um do escritor inglês Hugh Walpole em que lemos acerca de um caso contrário aos que já haviam sido expostos neste blog que tratam do tema da imobilidade das coisas contrastando com a interioridade viva do homem em angútia. Em autores como Proust, Augusto dos Anjos, Flaubert e Machado de Assis foram colhidos trechos que exemplificam desse descompasso entre o que se passa fora do sujeito e o que se passa dentro dele, como que o lado de fora se revela desértico, frio, seco, mudo, morto, indiferente às dores daquele dotado de uma interioridade pulsante. (Links dos textos citados: 1 | 2 | 3 ) No conto de Walpole ocorre algo de outra ordem. Havia uma máscara na parede da casa da personagem de nome Sônia Herries. Esta é vítima de um golpe que só se concretiza em razão de um consentimento secreto seu com ele. É justamente esta máscara (que testemunha) que dá nome ao conto. Portanto, o conto A mascara de prata nos mostra a estória de uma senhora que cede a impulsos de bondade materna ao ajudar alguém de má fé. E ela perde tudo, inclusive as suas forças mais vitais, restando somente um quartinho em cuja parede mal forrada com papel manchado fora pendurada a máscara de prata para que ambas se olhassem mutuamente. Neste pequeno espaço que lhe sobra, a máscara oferecida pelo seu malfeitor serve como suvenir da época em que as coisas que possuía ainda pertenciam a ela. À medida que acompanhamos os fatos narrados, nós leitores junto com a vítima protagonista vamos aos poucos percebendo o que está prestes a acontecer. Junto à clareza que a situação vai ganhando a máscara de prata muda de feição. Eis uma primeira diferença entre aqueles textos nos quais o que acentua a dor é a indiferença dos objetos e este em que na própria impressão que ela tem da máscara é revelado algo mais do que está no próprio objeto. O enfeite, então, não é absolutamente impassível à dor que ela sente de ser invadida, à dor da perda de seu lar para estranhos. Muito pelo contrário, a máscara zomba dela, debocha de sua fraqueza, caçoa de seus atos cometidos ao mesmo tempo voluntária e involuntariamente. Seria uma falsa questão se perguntar se a mascara ri mesmo ou se é na protagonista que as expressões daquele rosto duro se produzem à medida que própria dureza da prata de que é feita a máscara cede imaginativamente às feições que correspondem à consciência que a protagonista (e nós leitores) progressivamente vai tendo do mal que sonda mas em relação ao qual se vê impotente de se livrar porque consente com ele. É disso que a máscara ri – da passividade de Sônia Herries, do automatismo de suas atitudes, de sua falta de autonomia porque se deixa levar por uma espéice de bondade materna, do quanto ela mesma não pertence si própria. Em suma, a máscara ri do quanto ela se aproxima da condição de objeto, ri do quanto ela se assemelha à mascara mesma.

Pois bem, vamos às fazes da máscara ao longo do conto:

"Uma máscara de prata representando o rosto de um palhaço, um palhaço sorridente, maroto, alegre, sem nenhuma sombra daquela tristeza que tradicionalmente se atribui aos palhaços."

"(...) ao olhar através do aposento para a parede de tom claro em que a máscara de prata estava pendurada. Pensou que havia algo da aparência do rapaz naquela superfície brilhante. Mas onde? As bochechas do palhaço eram gorduchas, sua boca larga, seus lábios grossos... e no entanto... no entanto..."

"Ela notou que a máscara de prata estava mudando aos poucos. As feições rechonchudas estavam ficando afiladas, havia uma nova luz brilhando nas órbitas vazias. Era mesmo uma obra belíssima."

"Houve um momento em que Sônia Herries, erguendo os olhos até a máscara de prata, teve um sobressalto ante o sorriso que viu na boca do palhaço. Era um sorriso apertado, sarcástico, quase de zombaria."

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

As lágrimas e o esperma VERSUS a urina e o suor

CAETANO VELOSO, em determinado trecho de seu livro Verdade Tropical nos revela um problema que teve quando esteve preso no final dos anos 1960. Disso que se passou com ele resultou numa dupla impossibilidade: a de chorar e a de se masturbar. A partir desta constatação ele aproxima as lágrimas do esperma. Além de serem secreções expelidas pelo corpo têm elas como causa o que é propriamente pertencente à alma; diferentemente do que ocorre com a urina e com o suor, que por serem também secreções expelidas pelo corpo limitam-se as suas origens ao próprio corpo, não tendo como causa nada que tenha conexão alguma com o que esteja para além do orifício por onde elas saem. Tal impossibilidade do choro e da masturbação ele considera como a marca da perda da intimidade do espírito com o corpo.

"(...) que benção que seria não apenas poder ser arrebatado pela tristeza ou pelo prazer, mas também – e talvez principalmente – ter a experiência física das lágrimas ou de uma ejaculação! Parecia-me que eu seria salvo do horror a que fora submetido se sentisse jorrar de mim esses líquidos que parecem materializar-se a partir de uma intensificação momentânea mas demasiada da vida do espírito. De fato, o pranto e a ejaculação são, por assim dizer, vivenciados como um transbordamento da alma quando esta a um tempo se adensa e se expande, paradoxo interdito à matéria. Muitas vezes, depois de posto em liberdade, pensei nessa analogia entre o esperma e as lágrimas que me ocorrera por causa da situação vivida na cela da PE. É uma analogia que vai muito além da mera constatação de que se trata de duas secreções corporais: excetuada esta última condição, tudo o que aqui foi dito sobre o choro e o gozo não pode ser aplicado, por exemplo, ao suor ou à urina. Sem a graça do sexo ou do pranto, sentia-me como que seco de mim mesmo e apartado do meu corpo." (Caetano Veloso, Verdade Tropical, pag's 355, 356)