sábado, 20 de agosto de 2011

O que é a frivolidade?

Num certo sentido, a frivolidade é o temperamento típico de não fixação às coisas, um modo de ser imune ao valor do que é valoroso, o frívolo sendo justamente aquele cujas opiniões estão claramente restritas a uma perspectiva banal. Mas em relação às causas da rasa profundidade de tal pessoa as coisas podem ser diferentes do que parecem. Antes de considerar a mera falta de apego como traço da frivolidade, há na verdade um profundo dogmatismo em tal atitude. No fundo da superficialidade que caracteriza o frívolo encontra-se uma fixação patológica. A que precisamente o frívolo está fixado? Pense, por exemplo, que há duas posturas possíveis diante das tristes experiências pelas quais as pessoas passam durante a vida. A propriamente frívola consiste no fixar-se aos "nódulos psicológicos" que tais experiências produzem. A não frívola, na dissolução desses nódulos na alma, na sua absorção por parte da pessoa, resultando disso uma expansão da substância humana. A conclusão a que se chega é que a frivolidade é um problema ético antes que um problema de qualquer outra natureza, problema que pode ser resumido no seguinte dilema ao qual somos todos confrontados: fechar-se sobre si, construir muros de dentro dos quais não mais sair, forjar artificialmente uma interioridade em descontinuidade com o exterior e nela se refugiar e, por fim, considerar como invasivo tudo o que provém lá de onde não nos reconhecemos? Ou, ao contrário, se deixar afetar pelas circunstâncias para delas melhor colher o que possa ser precisamente constitutivo de uma sensibilidade especial e nova que nos permita apreender o que até então se encontrava em estado de dispersão e latência? As tais cercas da primeira escolha criam as noções de dentro e fora. Mas as cercas possuem fendas, e todos os esforços por sustentá-las estarão desde sempre fadados ao fracasso. O frívolo culpa o "diabo" por isso em vez de ver que as lacunas de seu edifício vêm com a construção do próprio edifício. Por trás do frívolo há um esboço do sentimento fascista que o aprisiona a uma busca incessante por segurança; ele considera o mal como exterior e sonha com a imobilidade do mundo. Só num mundo eternamente imóvel encontraria ele a segurança que tanto almeja. É em Lições de Abismo, de Gustavo Corção, onde pode ser encontrado o que talvez seja uma das melhores considerações acerca do fenômeno da frivolidade.

"O que existe na frivolidade é mais doença do que saúde; mais fixação do que mobilidade; mais morte do que vida. Eu disse fixação. Explico-me melhor: todos nós sofremos na vida certos golpes psicológicos, um susto, uma surpresa maravilhada, uma descoberta dolorosa, que deixam em nós um resíduo. Ora, tudo em nossa vida vai depender da possibilidade de assimilação desses resíduos. Se conseguirmos dissolvê-los na substância de nossa pessoa, então esses sinais de nossas experiências serão fecundos. Haverá propriamente uma experiência humana, um lucro. Se eu transformar em sangue, em alma, as pedras de meu caminho, terei doravante antenas sensíveis que antes não possuía, serei capaz de intuições que antes me faltavam. Farei versos, descobrirei novos planetas, ou terei simplesmente um harmonioso equilíbrio que me permitirá a dilatação da vida." (Gustavo Corção, Lições de Abismo)

terça-feira, 2 de agosto de 2011

O silêncio, a música de John Cage

NORMALMENTE, o efeito da música 4'33'', de John Cage, naqueles para quem ela é apresentada é cômico. Composta em 1952, ela é constituída de 3 movimentos e dura exatos 4 minutos e 33 segundos. No vídeo da "versão" de David Tudor, as palavras de seu autor que antecedem a apresentação são: "the material of music is sound and silence. Integrating these is composing. I have nothing to say and I am saying it." Cage, deste modo, incorpora à música, pensa como parte integrante sua, o silêncio, diferentemente das considerações acerca da música de tempos anteriores que opunham uma coisa à outra, a música ao silêncio. Ambos, agora, deixam de se excluir mutuamente. Mesmo 4'33'' sendo só silêncio, essa música não é um mero nada: possui bordas, tem um início, é dividida em partes, e termina. Ela equivale às molduras sem tela penduradas nos consultórios dos psicanalistas (mas estarão elas vazias?). Portanto, é isso que Cage faz: nega ao silêncio o seu antigo caráter de nada. Esta é a mudança que o silêncio sofre. Não sendo mais ausência absoluta, ele se torna o contraponto do som. Se o silêncio é negação de alguma coisa, essa coisa não poderia ser outra que o seu contraponto no interior da peça que os estabelece (separando-os) através do arranjo. Uma primeira implicação: desfazendo a identificação — embora espontânea, mas — nada natural entre o silêncio e o nada enquanto negação radical, o silêncio estará necessariamente comprometido com aquilo mesmo que se supunha que fosse o seu contrário. E mais: ele é a sua condição mesma, aquilo que o torna possível. A conseqüência direta é a perda do "lado de fora" da música, do lugar neutro a partir de onde perspectivar a música e julgá-la. Sem tal lugar, como separar o som do ruído? A distinção entre eles se torna, assim, apenas aparente, pois se diferem somente em grau, mas não de natureza. Se se diz que música é a arte de "esculpir" os sons, dever-se-ia antes afirmar que música é a arte de trabalhar os ruídos, inclusive negando-os. A existência dos samplers, hoje, é testemunha disso. Eles permitem à música a inserção de elementos, como determinados sons, ruídos e até diálogos de outras cenas. Tais aparelhos, trabalhando as ondas, modificando tudo o que por eles passa, reduzem à condição de coisa aquilo que, quando bem combinado, nos eleva às mais superiores esferas da sensibilidade. O silêncio e o ruído não são mais limites opostos (e externos) no intervalo dos quais se faz música. O silêncio deixa de ser nada, negação, ausência; e o ruído, por sua vez, deixa de ser desordem, confusão, indistinção, caos.

OUTRA hipótese é considerar que a música 4'33'' de Cage seja o instante prolongado ocupando plenamente o espaço entre dois únicos tempos num andamento de 0,23094688221709 BPM (Beats Per Minute). A extensão da duração entre o primeiro e o segundo (último) tempo seriam os exatos 4 minutos e 33 segundos. Já as paradas que intercalam as suas três partes, os momentos de retomada do fôlego. O gênio de Cage foi justamente destacar pelo recorte o que se achava que fosse apenas vazio, cercando com a determinação de um tempo e fixando através de um nome — nome que não passa de repetição do quanto tempo dura esse "ruído branco", o silêncio. Quando o som é subtraído e o silêncio que o entremeia se dilata, o que resta, mais que a matéria do silêncio, é a experiência pura do tempo, que em alguns causa tédio (por este motivo ela é dividida em partes para a recuperação do fôlego) e em outros, riso. Cage criou a música sem os relevos que o jogo do som e do silêncio poderia gerar, e justamente porque sem tais relevos que permite que se escute o próprio tempo.


JOHN CAGE - 4'33''