terça-feira, 23 de novembro de 2010

O função das analogias em Marcel Proust

A DIFICULDADE de se libertar de certos autores fica bastante evidente na recorrência de determinados temas tratados por eles na escrita do cativo. Tal coisa se percebe neste blog no tocante a Proust, aquele em relação a quem ainda me vejo ligado, como se nele coisas ainda pudessem ser extraídas. A angústia consiste no fato de que o que ainda está a ser descoberto certamente seja alguma coisa sem a qual terei problemas para lidar com o que se passa em mim. O grande escritor é aquele que nos apresenta a nós mesmos em razão do fato de que “cada leitor é, quando lê, o próprio leitor de si mesmo” (a obra servindo como uma espécie de lente de aumento do que se passa no interior de quem lê mais do que no de quem escreve). Mas deixando o desabafo de lado, o que interessa hoje é o caráter Simbolista de Proust, algo bastante revelador do efeito de sua obra naquele que a ela se entrega. Há nesta tendência literária a já bastante conhecida separação teórica efetuada por Platão entre essência e aparência. A prosa de Proust é simbolista em razão de sua busca pela essência em detrimento da aparência. Como faz isso? Por que meios chega ele à essência? A resposta é a arte poética, o modo por excelência que opera através das analogias. Analogia é o estabelecimento de uma semelhança entre coisas distintas. Proclama em seguida como perda de tempo preocupações relativas ao social e ao amor, para ele meramente ligadas às aparência. O social porque é a busca por reconhecimento e aceitação por um grupo; o amor, porque é a busca pela participação de um mundo, o da pessoa amada, que aquele pela sua condição mesma de amante desde sempre se encontra excluído, não sendo o seu ciúme outra coisa que o efeito de seu ato de decifrar os índices de uma verdade perversa. No início do primeiro volume, quando Marcel põe na boca o bolinho Madeleine molhado de chá, a sensação que este lhe causa o remete ao tempo até então esquecido de sua infância. Muito mais que o passado, é a memória que sai da xícara de chá onde o bolinho fora molhado. (Em sua infância, no quarto da tia enferma ele comia tais bolinhos molhados com chá.) Sensações semelhantes em épocas distintas são o que ele chama de “impressões sensíveis”. Portanto, analogia ao nível da sensação. A sobreposição de épocas distintas num único e mesmo instante através de uma sensação comum a ambas permite a ele a experiência de eternidade em meio a um mundo fugaz. Mas a questão artística ainda não passa por aí, mas sim no campo da linguagem. A arte tem por objetivo a superação do tempo, não só porque ela sobrevive ao artista (como quando o escritor fictício Bergotte morre, “durante toda a noite fúnebre os seus livros (...) velavam como anjos de asas espalmadas e pareciam, para aquele que já não existia, o símbolo da sua ressurreição.”), mas também porque comunica para aquele que tem “impressões” o que pode existir de eterno. É justamente na criação de analogias que as essências são desveladas. Semelhante "método" faz sair verdades de coisas antes tomadas apenas como restritas às aparências e que agora se tornam livres no e pelo espírito do gênio. Um exemplo: ao final da primeira parte do primeiro volume, o narrador ainda criança tem o seu primeiro lampejo artístico quando avista à distância, no caminho de Guermantes, alguns campanários. Ele sente a necessidade de se “desembaraçar” do paradoxo que o atormenta entre o que vê e o que em seu espírito a vaga idéia de um além lhe é sugerida. Sob os campanários que se mostram a ele, o que é isso que escapa ao mesmo tempo que insiste pela sua condição mesma de coisa oculta? Ele diz: “aquilo que estava oculto atrás das torres de Martinville devia ser algo assim como uma bela frase, (...) e para aliviar a consciência e obedecer a meu entusiasmo, compus (...) o pequeno trecho...” As primeiras linhas que escreve rompem como que de uma casca, mostrando a ele mesmo aquilo a que não tinha acesso antes de sua entrada na dimensão poética. Lembrando o que disse certa vez Ferreira Gullar, que “as pessoas se igualam em direitos, mas não em qualidades”, eis então o que distingue os poetas dos homens comuns: realizam um seccionamento que liberta as coisas de sua aparência costumeira e permitem que se perceba as analogias. Não somente o olhar que se tem das coisas como o próprio mundo resulta desse ato, pois não há mundo que não seja para um olhar. Portanto, antes e acima de qualquer coisa, o que Proust nos ensina é a ver.

(BRUNO HOLMES CHADS, 23 de novembro de 2010)