segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

A aparição do para além dos limites do visível

HÁ ALGUM tempo atrás escrevi sobre o espaço do teatro, o do cinema e as suas diferenças. (link do texto) Havia mostrado que enquanto o espaço do primeiro direciona o nosso olhar para o centro, o do segundo para os limites de suas bordas, sugerindo com isso a presença de um “de fora”, o que em linguagem cinematográfica chama-se extra-campo. Pois bem, obviamente a distinção é puramente ideal. Ambas as formas se imbricam mutuamente: há um pouco de teatro no cinema como há cinema no teatro, e é por isso que os seus espaços coexistem sem no entanto se confundirem. O mesmo ocorre em relação à pintura e à fotografia. A pintura produziria um espaço cuja força de atração sobre o olhar o leva para o centro, ao passo que na fotografia tende na direção oposta o nosso olhar, quer dizer, para as bordas, espécie de efeito de atração daquilo que não aparece no seu espaço interno mas que por uma “vontade” qualquer quer se mostrar. A invenção do cinema pode ser pensada como uma vitória do que escapa ao retângulo do enquadramento em razão de sua possível aparição no interior da cena. Mas, mesmo na pintura (ou desenhos, como veremos) já é possível notar a presença ou, talvez menos, a sugestão dos elementos que estão do lado de fora do enquadramento. Há nestas raras obras uma espécie de pressão do que não aparece sobre o que aparece no retângulo do enquadramento: mais que se tornar visível, tornar-se existente. Pintores como Degas, Manet, Velásquez e o xilogravurista M. C. Escher são alguns exemplos de quem produz uma arte estática mas sensível ao "de fora". Não recorrem ao movimento (próprio do cinema) para trazer à luz o que não é visível pelo restrito espaço da cena, mas usam como recurso algo que reflete, podendo ser um espelho ou mesmo a água.
Os trabalhos seguintes possuem o espelho como o objeto que permite a aparição do que está para lá dos limites do visível. Os dois primeiros são do artista Edgar Degas. O terceiro de Édouard Manet. O quarto de Diego Velásquez:




Os três trabalhos seguintes são do xilogravurista M. C. Escher. Agora não são mais os espelhos os objetos que nos permitem a entrada do que não está enquadrado, mas a água (nos dois primeiros) e o vidro, cuja transparência cede lugar ao reflexo.



domingo, 5 de dezembro de 2010

A melodia de uma sonata ou a mulher desconhecida


                                             I

NÃO é novidade a admiração de Proust pelo poeta Charles Baudelaire. No curto trecho selecionado nota-se que o autor da Recherche assume do poeta uma forma de apreciar o que não se apreende em razão de sua natureza fugaz, embora seja outra coisa que uma mulher - tema de "A uma passante": a melodia de uma sonata. Como Swann (e o próprio Proust) nada conhecia de música, a sua relação com ela é de grande interesse justamente para quem sabe algo de música, pois trata-se de uma maneira espontânea de a sensibilidade apreender a sua verdade, diferentemente da de um músico que enxerga nela relações desconhecidas para o leigo. No que diz respeito às artes, segundo o autor (cuja obra além de ser um romance é também uma teoria do romance e uma crítica de arte), a essência de qualquer forma de expressão artística não se transmite pelo intelecto, mas sim pela sensibilidade, a faculdade acerca da qual podemos afirmar como sendo a única capaz de compreender a linguagem de uma comunicação especial que se dá em tal nível. A interação entre mundos, o dos gênios e de seus apreciadores, é entre uma sensibilidade e outra e não de um intelecto a outro. Na música, não é a materialidade sonora ou a lógica das combinações de seus elementos, mas os seus efeitos naquele que ouve, o que Proust chama de “Impressão”, uma combinação do que chega pelo sentido da audição com a imaginação, resultando disso em algo ímpar, um espetáculo para um único espectador, aquele no interior de quem a substância do belo se forma. É o mesmo que afirmar que a beleza – seja de uma mulher, de uma frase melódica ou de uma flor – está mais em quem a aprecia do que no objeto apreciado, pois tal objeto não passa de mero meio para a experiência do sublime. É por este motivo que o exagero do homem sensível - quando diante daquilo que poucos ou mesmo ninguém vê beleza alguma - não deve ser visto como ilusório ou desproporcional. Não existe semelhante coisa como inadequação entre uma impressão e aquilo que a causa. No interior de tal homem, não se distingue até onde é a sua atividade de elaboração, até onde é material bruto que lhe vem de fora. Desse emaranhado resulta a Impressão individual, pertencente somente àquele que a tem.

                                             II

A título de curiosidade, Swann, personagem tão admirado pelo narrador em sua infância, padece, “como de uma dor de dente”, de um amor que sente por alguém de nome Odette, aquela com quem mais tarde irá se casar. Tal união se dará somente após ele se dar conta de que já não a ama (é quando diz: “já posso casar-me com Odette, já não a amo mais”). Crítico da instituição do casamento e contrario ao que é afirmado Proust percebe como condição mesma da união efetiva a ausência de amor, uma vez que o casamento visa a outras satisfações que escapariam à “pureza” do que poderia ser amar.

                                             III

Uma das dificuldades de Swann que justamente levará Proust a chamá-lo de “celibatário da arte” é em relação ao processo de criação. Limitando-se sempre à virtualidade do planejamento, seus projetos nunca ganham vida. Em geral, são eles todos vencidos ou pela preguiça ou pela sua subordinação ao que lhes é inferior, que pode ser tanto a vida mundana (quando perdemos tempo em busca de aceitação), quanto a vida amorosa. No caso de Swann, é o amor principalmente que o impede de criar, de fazer arte e de até mesmo apreciá-la no que ela tem de verdadeiro. Swann subordinava a arte ao amor: sempre que ouvia a pequena frase melódica de Venteuil lembrava-se de Odette. De sua incapacidade de preceber o que poderia haver de belo na música enquanto música resultava a sua recorrente remissão a partir da pequena frase melódica ao sentimento que tinha por Odette, sentimento este tão soberano para Swann, subjugando a ele todas as coisas por submetê-las a seus critérios.

                                             IV

Foi justamente numa festa que Swann ouve a sonata e que depois ficamos sabendo ser de um tal Venteuil, professor de piano sem grande renome. A impressão que ele tem de um determinado trecho da sonata, conhecido como “a pequena frase”, Proust a descreve da seguinte maneira:

“Num lento ritmo ela [frase melódica] o encaminhava primeiro por um lado, depois por outro, depois mais além, para uma felicidade nobre, inteligível e precisa. E de repente, no ponto aonde ela chegara e onde ele se preparava para segui-la, depois da pausa de um instante, ei-la que bruscamente mudava de direção e num movimento novo, mais rápido, miúdo, melancólico, incessante e suave, arrastava-o consigo para perspectivas desconhecidas. Depois desapareceu. Ele desejou apaixonadamente revê-la uma terceira vez. E ela com efeito reapareceu, mas sem falar mais claramente, e causando-lhe uma volúpia menos profunda. Mas, chegando em casa, sentiu necessidade dela, como um homem que, ao ver passar uma mulher entrevista num momento na rua, sente que lhe entra na vida a imagem de uma beleza nova que dá maior valor à sua sensibilidade, sem que ao menos saiba se poderá algum dia rever aquela a quem já ama e da qual até o nome ignora.”
(No caminho de Swann, p.263)

Em seguida, a poesia de Baudelaire. O que é visado não é mais uma frase melódica, mas sim uma mulher que passa. (A tradução é do meu amigo José Fernando Fagundes Ribeiro)



A uma passante

A ensurdecer, ao meu redor a rua urrava.
Longa, esbelta, de luto, em dor majestosa
Passa... uma mulher, e com a mão faustosa
A orla do vestido alçando balançava;

Ágil e nobre, com a sua perna de estátua.
Eu lhe bebia, qual crispado extravagante,
Em seu olho, um lívido céu trovejante,
A doçura que encanta e o prazer que mata.

Um clarão... noite após! Fugitiva beleza
Que me fez com o olhar renascer de surpresa,
Só hei de te rever na eternidade agora?

Vai longe! Para sempre, talvez, foi-se embora!
Aonde foste eu não sei, nem sabes aonde vou,
Ah, tu que eu amaria, ah tu que o reparou!

(BRUNO HOLMES CHADS, 6 de Dezembro, 2010)